Julio Shimamoto
Entrevista com Noriyuki Sato, em setembro de 2007.
O senhor nasceu em Borborema, mas me parece que hoje não é uma cidade cheia de japoneses. Como era essa cidade e o que os japoneses faziam lá?
Com certeza, restam poucas famílias de japoneses e nisseis por lá. Borborema sempre foi uma cidade pequena, de apenas 545 km². Pelo censo dos anos 90, sua população era de apenas 12.469 habitantes. Com a altitude de 420 m, dista 370 km da cidade de São Paulo.
Fundada em 1902, com o nome de Fugidos, relacionado a três ex-escravos negros que ali viviam em estado selvagem. Na medida que o povoado crescia, decidiram rebatizá-la com o nome de Borborema, apelido de um morador paraibano que nascera na Serra de Borborema. Dizem os entendidos, que em tupi-guarani Borborema significa “terra de ninguém”.
Os japoneses foram para lá como agricultores. Antes da II Guerra Mundial, a região se tornara pujante produtora de algodão.
Na segunda metade dos anos 30, os Oishi, família de minha mãe, possuíam um armazém de secos e molhados. Nessa época, papai apareceu por lá, como vendedor-viajante. Como tinha formação contábil no Japão, meu tio lhe ofereceu emprego. Acho que aceitou ao conhecer mamãe, caçula da família (com a irmã mais velha ensinava corte e costura). Quando nasci, em 1939, nós saímos de Borborema, e fomos tentar a sorte no sertão. Papai fez de tudo: cultivou terra, administrou fazendas, gerenciou serraria e viajou vendendo madeira.
A titia que era sócia de mamãe na escola de corte e costura, também se casara. Seu marido era fotógrafo itinerante e abriu o primeiro ateliê fotográfico da cidade, mas morre alguns anos depois, e titia assume o estúdio, ajudada pela filha Miyoko, ainda mocinha. Em 1949 eu volto para Borborema e vou morar com elas. Não havia o 3º ano na escola da fazenda “Kuriki” que papai administrava. Foi esse período que mais me impulsionou para o mundo dos quadrinhos e dos desenhos. Além dos estudos, eu as ajudava em tarefas caseiras, pois a titia e a prima estavam sempre ocupadas com fotografia. Em retribuição, ganhava muitos gibis que um bilheteiro de trens saía vendendo durante suas folgas. Fora os gibis, também recebia ingresso para as matinês de domingo. Duas fortes influências que faziam minha imaginação de criança fervilhar, a ponto de pegar no lápis e sair enchendo papéis de embrulhos e orelhas de jornais com cenas toscas de bandidos e mocinhos.
Seu pai era um homem rigoroso, como um militar, de temperamento difícil?
Papai era homem de pouco riso. Ficara órfão aos 5 anos. Vovô se feriu gravemente quando servia como tenente da cavalaria. Na reserva, chegou a dirigir o correio de Tamaki, no distrito de Shingu, antes de morrer. Papai recebeu tutela parcial de um tio, instrutor de kendô e yawara-jutsu (arte marcial de combate corporal, semelhante ao judô) no quartel do exército da província de Wakayama. Às 4 horas da manhã, antes de seguir para o trabalho, fazia papai treinar esgrima, mesmo sob neve. Por estresse e frio, ele pedia para urinar com muita freqüência, e ganhou do tio o apelido de “xobentarê” (mijão). Na adolescência entrou para um templo budista como noviciado, mas faltou-lhe vocação e desistiu. Nossos ancestrais, como guerreiros, serviram no shogunato de Oda Nobunaga, o primeiro líder que deu início à reunificação do Japão – conhecido por período Momoyama (1568 – 1600).
Apesar de disciplinado e rigoroso, papai tinha dificuldades em me enquadrar. Sempre fui o mais rebelde dentre seus 4 filhos. Ele queria que eu estudasse eletrotécnica, insistindo que artistas morriam de fome. Faleceu aos 54 anos. Hoje, depois de velho, reconheço sua grande contribuição para a minha vida, e lhe sou profundamente grato. E confesso que, como pai, também enfrento dificuldades em passar valores herdados para os meus filhos.
Na época da Segunda Guerra Mundial, sua família sofreu preconceitos? Como era o seu dia-a-dia?
Eu era ainda muito criança e não percebi preconceitos durante a guerra. Convivíamos com vizinhos brasileiros e japoneses normalmente. Nesse período pré-escolar eu só brincava, sozinho ou com outras crianças. Ia nadar, andar a cavalo, errar pelas matas procurando frutinhas, ou ninho de passarinhos, e rabiscar jornais, traçar figuras no chão com galhinhos secos.
Só após o fim da guerra com a derrota do Japão, tomei conhecimento de alguns incidentes raciais contra japoneses. Conhecidos de papai reclamavam que eram rejeitados em alguns hotéis, ou não podiam viajar em vagões de 1ª classe, e muitas moças sofriam estupros nos campos. Ocorria também casos de roubo, e até assassinatos.
Vou contar um acontecimento envolvendo papai, em 1946, na fazenda de Sr. Kuriki. Todos os sábados, como administrador, papai coordenava a distribuição de provisões para uma semana aos colonos agregados, brasileiros e japoneses. Um deles, caboclo, voltou de mãos vazias. Motivo: sua lavoura vivia abandonada, tomada de ervas daninhas. Vivia embriagado, sem condições para o trabalho. Após repetidas advertências sem resultado, o patrão mandou que lhe cortassem os mantimentos. Às sextas papai saía a cavalo para inspecionar as plantações, e na volta, margeando um denso canavial, salta-lhe à sua frente, brandindo uma foice, o caboclo que aguardava de tocaia. O cavalo empinou, mas papai não caiu. O atacante vociferou possesso: “Vô ti matá Japão fiudaputa!!! Ti matu, Japão!” mesmo trôpego, o atacante era perigoso, e papai decidiu se afastar e retornou à sede da fazenda. No entanto, notícias assim se espalhavam mais rápidas que o vento. À noite, um grupo de colonos japoneses com caras amarradas veio procurar papai. Propuseram linchar o agressor, e enterrarem o corpo em algum ermo das plantações. Papai ficou pálido como farinha, e condenou de forma veemente tal idéia, argumentando que todos acabariam presos, cedo ou tarde. “Além disso, o homem tem esposa e 3 filhos pequenos. Nem pensar!”, objetou papai. O patrão Kuriki decidiu por expulsão, pois o colono relapso mostrara-se traiçoeiro e perigoso. Na manhã seguinte, acompanhado por 3 peões, papai foi levar a ordem de expulsão. Avistou além dos canaviais uma densa esteira de fumaça, e surpresa! Da cabana só restavam brasas e cinzas, em meio a ferragens de equipamentos agrícolas, enegrecidos pelo fogo. O poço que ficava no quintal estava entupido de entulhos. Até madeiras do cercado fora jogado dentro. Papai sentiu ali um alívio indescritível. O caboclo tinha fugido arrastando a família…
Outro incidente, em 1947, aconteceu comigo, quando entrei para o Grupo Escolar de Vila Castilho, na comarca de General Salgado. Sofri perseguição racial intensa, a ponto de querer deixar a escola, e ter raiva de ter nascido no país. Ao me verem, os alunos costumavam cantar em côro: “O Japão perdeu a guerra! O Japão perdeu a guerra!!!” da agressão verbal, passaram para a agressão física. No recreio formavam um corredor polonês e me enchiam de sopapos até eu desabar doutro lado, então alguns me chutavam. Como eu tinha sofrido parcial paralisia infantil ao nascer, eu usava bota corretiva na perna direita, outro motivo para chacotas. Esse trauma deixou-me marcas profundas, que só o tempo curou. Mas papai me ajudou muito, e como. Pregava que nada era mais abominável que vítima passiva, e entre viver sem dignidade ou morrer, preferia o último. Ele escreveu uma carta à minha professora denunciando minha situação escolar, e ela admoestou os alunos envolvidos nos maus tratos. Aí é que ficou pior, até me xingaram de mulherzinha e dedo duro. Lamento dizer isso, mas concluí que crianças podem ser piores que adultos em certas circunstâncias. Frustrado, decidiu que eu mesmo tinha que me defender. Como que incorporasse seu severo tio, antes do jantar, logo que chegava do trabalho, ministrou-me exercícios forçados e aulas intensas de esgrima e yawara-jutsu (mistura de aiki-jujutsu com jiujitsu). E nas férias tinha treinos extras, e em criança o corpo responde desenvolvendo-se com assombrosa rapidez. Certo dia derrubei papai durante o treinamento. Não tenho certeza se ele forjou sua queda, mas a minha auto-estima subiu como um rojão. Conseguira um feito que, no meu entender, nenhum daqueles colegas da escola seria capaz. Na manhã do reinício das aulas, um guri chamado Gilberto, que usava capacete de caçador modelo “Jim das selvas”, deu-me forte empurrão para impressionar um grupo de meninas que conversavam próximo ao portão de entrada. Reagi de pronto acertando-lhe um soco na face direita, e dois seguidos no peito. Com a face manchada de vermelho e surpreso, começou a recuar de costas, mas não aliviei, tomado de raiva acumulada durante um semestre de humilhações e maus tratos. Ouvi meninas aplaudindo, e para minha surpresa, alguns meninos que começaram açulando o agressor, gritando “Quebra o Japão, quebra!”, passaram também a vaiá-lo, decepcionados. Depois do término das aulas, um grupinho me esperava na estrada, fora da vila. Era formado por 5 garotos, que faziam o mesmo trajeto que o meu, de 5 a 6 quilômetros, filhos de sitiantes e fazendeiros, vizinhos do sítio de papai. Atraquei-me com um deles, que vestia uniforme bem alinhado, vestindo camisa fina, que reduzi a trapos em segundos. A minha, de tecido de saco de farinha só ficou amarrotada. Um passante interferiu, e a briga parou sem envolver o resto da turma. Adiantaram o passo pela estrada, e eu fiz o oposto. Estava trêmulo pelo efeito da adrenalina. Quando cheguei perto do cercado do nosso sítio, eles que estavam emboscados partiram para cima de mim, brandindo paus e pedras. Agarrei e tomei o galho nodoso de João, o líder e pasme, ele era sobrinho do fazendeiro Pompílio, meu padrinho de batismo (fui batizado tardiamente, aos 7 anos). Fui desferindo golpes a esmo como um tresloucado, mesmo ferido na cabeça e no corpo por pedradas. Outro passante, um caboclo a cavalo interveio, ameaçando contar aos nossos pais sobre a briga, em que todos saímos feridos. Ponto final. Ninguém mais buliu comigo no 2º semestre. Apanhando ou vencendo, nunca mais hesitei em revidar as agressões verbais ou físicas. Assim, era de se esperar que surgissem muitos incidentes na minha vida. Dois merecem destaque. O primeiro ocorreu em 1956, dentro do trem Santos-Jundiaí, quando ia ao trabalho. Era desenhista principiante do departamento de promoções nas Lojas Sears de Água Branca. Engalfinhei-me com 2 batedores de carteira e levei uma cabeçada no nariz e socos e pontapés por trás. Passageiros do trem e um policial intervieram. Reclamei que tentaram me roubar, aí os passageiros testemunharam a favor dos ladrões, então o guarda me repreendeu, pois a minha carteira estava comigo. Xinguei-o de parceiro dos punguistas e me prendeu. Na estação de desembarque (Luz), quando me conduzia à chefatura, eu lhe disse que era menor de idade. Conferiu minha identidade e ao me liberar, disse-me em tom paternal: “Garoto, você é muito impulsivo, e ainda me desacatou em público. Controle esse gênio!”. Outro caso foi de trânsito, em 1970 ou 71, não importa, eu estava dirigindo meu carro na hora do rush, descendo a Rua Tabatinguera (São Paulo), e um carro vinha “costurando” apressado vindo lá de trás. Emparelhou-se à minha direita tentando cortar-me a frente. Não lhe abri espaço e segui a fila. Quando desembocamos na Rua Glicério, mais larga, com um bólido o carro “costurador” passou-me à frente obliquamente e freou, quase colidimos, parando o trânsito. Desceram 4 rapazes, todos bem vestidos, de terno. Eu também desci para não ser flagrado sentado. Vieram ameaçadores. Um deles, nissei, agarrou a antena do rádio e começou a entortá-la. Perdi o controle e fui para cima, então outro que estava perto sacou uma pistola e encostou no meu peito. Das janelas de ônibus lotado, assim de gente, assistiam e decidi não amarelar e berrei: “ATIRAA, FILHUDAPUTA! ATIRAA!”… o nissei puxou empurrando-o de volta para o carro. Embarcaram e foram-se cantando pneu. Eu fiquei uns 10 minutos parado dentro do carro, lívido, sentindo o corpo gelado, apesar do calor… e finalmente os buzinaços impacientes dos carros de trás me devolveram à ação e fui para casa, em Santo André. Mamãe pôs a comida na mesa, mas não comi, e naquela noite não consegui dormir. Eu podia ter sido morto em plena rua, por teima besta de trânsito. E desde então, decidi me controlar de forma calculada evitando impasses.
O que faziam em Ferraz de Vasconcelos? Pelo menos era perto de São Paulo. Foi dali que o Sr foi procurar as editoras?
Em 1953 papai perdeu o emprego de tradutor das Lojas Cassio Muniz. Sua função era verter os anúncios em português para o japonês, que eram veiculados em revistas e jornais dirigidos aos japoneses imigrados. Estava com mais de 40 anos. Foi vendedor de seguros; foi tentar ser fotógrafo, e até estagiou num estúdio; foi ser aprendiz de alfaiate; e, então cismou em criar galinha. Escolheu para nosso aprendizado em avicultura a maior das granjas da época, e ela estava em Ferraz de Vasconcelos, chamava-se Higuti ou Higuchi, já não me lembro com precisão. Foi um período duríssimo para nossa família. Eram 16 horas diárias de trabalho intenso para papai, mamãe, eu e mano Higino, que tinha 9 anos (ao voltar da escola, tinha que ajudar também). Outros irmãos eram crianças de 6 e 4 anos. E o pagamento total mal empatava com o salário mínimo.
Decidimos sair, pois a preocupação maior passou a ser o estudo, e estando lá era impossível, impraticável. E fomos para o município de Santo André. Papai arranjou emprego na fábrica Fontoura-Wieth, no setor de cultivo de antibióticos, onde monitorava a temperatura das incubadeiras. Era local insalubre, de iluminação de lâmpadas infravermelhas. As moças que lá trabalhavam acabavam estéreis. Aos 54 anos, papai morreu de câncer quando ainda trabalhava nos laboratórios. Fora antibióticos e vacinas, o produto mais popular deles era Kolynos, pasta dentifrícia. Mamãe passou a costurar para fora. Era comum vê-la pedalando sua Singer madrugada a dentro. Aos 15 anos fui trabalhar na matriz da cadeia de lojas Buri. Entrei como estoquista, e tempos depois fui promovido a sub-chefe do setor, sempre alimentando o sonho de me tronar desenhista. Tanto que na época matriculei-me na Associação Paulista de Belas Artes. Com intenção de melhorar de salário fiz testes em 2 multinacionais: Pneus Goodyear e Sears-Roebuk. Aprovado em ambos, optei pela última, para desenhista, a carreira dos meus sonhos.
A frustração não tardou. Por não ter experiência de profissional, minha função rotineira era de office boy! A frustração se transformou em raiva, e em 6 meses tentaram transferir-me para departamento de aparelhos domésticos e aí me demiti, no dia que fazia 17 anos. Colecionei recortes de anúncios procurando desenhistas, mas não emplaquei. A falta de experiência era como estigma. Decidi procurar editora de quadrinhos. Sorte. Na Novo Mundo fui bem recebido pelo diretor, Miguel Falcone Penteado. Avaliou e criticou defeitos, aconselhou, e deu-me um teste: substituir as páginas de Acredite se quiser, de Ripley’s. Apesar do frio na barriga, topei. Criei Agora sei que, sobre mitologias e curiosidades históricas e geográficas universais. Aprovou e me disse: “É preciso amadurecer mais seu traço, mas noto uma grande teimosia em seu trabalho. Faça disso combustível para sua evolução.” Depois apresentou-me a Jayme Cortez que, como amigo, costumava visitá-lo. Ele era diretor de arte da Editora LaSelva, e então ele deu-me para desenhar Fusarca & Torresmo e Arrelia e Pimentinha, personagens de circo de grande sucesso da televisão. Nessa época, a prefeitura de Santo André promoveu o concurso de cartazes dos Jogos Abertos do Interior que iria ser realizado na cidade. Concorri e fui premiado em 1º lugar, e com o dinheiro ganho mandei fazer um terno. Antes só usava roupa de papai, reformada por mamãe.
E a grande chance dos quadrinhos nacionais viria em 1958, com a inauguração da Editora Continental, por motivos legais foi rebatizada de Outubro. Surgiram então vários talentos do quadrinho brasileiro.
Como se sustentava enquanto não podia viver de quadrinhos?
Na grande crise dos quadrinhos, mais uma vez fui socorrido por Miguel Penteado. Indicou-me para a grande Editora do Brasil, especializada em livros didáticos, e desenhei quadrinhos para o jornal Folha de São Paulo, sobre causos do futebol paulista.
Sua família apoiava o seu dom, ou queria que abandonasse?
Mamãe tinha posição neutra, mas papai se tornou radicalmente contra, dizendo que o fim comum dos artistas era morrer na penúria. E também o meu baixo rendimento escolar fazia com que papai começasse a rasgar e incinerar qualquer gibi que encontrasse, até os ocultos em baixo da cama, que algum irmão meu denunciava, após alguma briga.
Qual era a diversão mais comum entre os jovens nikkeis da sua época?
Como pôde perceber, eu não convivi com jovens de comunidades nikkeis, e não tenho nenhuma opinião de como eles se divertiam. Presumo que a maioria deixava a colônia para ir à capital em busca de estudos, como fizeram meus primos, e procuravam empregos, acelerando o processo de integração aos costumes locais.
A ADESP foi a primeira associação de desenhistas de quadrinhos do Brasil? O que essa entidade fazia?
Quase uma década antes da ADESP, em 1951, um grupo de entusiastas dos quadrinhos formados por Álvaro Moyá, Miguel F. Penteado, Jayme Cortez, Syllas Roberg e Reinaldo de Oliveira, mobilizaram-se para neutralizar uma feroz campanha contra os quadrinhos acionada pelos setores conservadores da intelectualidade: psicólogos, educadores e expoentes da mídia. Montaram em São Paulo a 1ª Exposição Internacional dos Quadrinhos a ser realizada no mundo. Devia estar no Guinness.
A famosa mostra teve lugar no Centro Cultura e Progresso, espaço cedido pela comunidade judaica, da Rua José Paulino. Cartazetes com fotos de expoentes da cultura internacional que adoravam quadrinhos foram colados sob um grande título em letras garrafais: “NÓS LEMOS HISTÓRIA EM QUADRINHOS”. Eram fotos de Orson Welles, William Falkner, Thomas Mann, John steinbech, Thornton Wilder, Dorothy Parker, entre outros.
A ADESP foi fundada nos inícios dos anos 60, com a presença do assessor do presidente Jânio Quadros, recém-eleito. Os jornais e as televisões registraram o evento. A sede ficava no 19º andar do velho edifício Martinelli, na Rua São Bento. Era na verdade o estúdio de 4 sócios desenhistas: eu, Saidenberg, Lyrio Aragão e Igayara. A idéia do movimento partiu de Miguel Penteado, que costumava visitar-nos para um papinho. Foi dele também a sugestão de elegermos o articulado Maurício de Souza para presidir a ADESP. Ganhou por unanimidade. A missão da ADESP era de unir a dispersa classe de desenhistas de quadrinhos, de publicidade e ilustradores, numa única entidade. Alguns roteiristas e redatores de publicidade pediram adesão, justificando que sofriam problemas similares aos dos artistas do pincel. Foi redigido um memorial de reivindicações da classe que o assessor se incumbiu de entregar ao Jânio. Pedia-se a regulamentação para que se tornasse obrigatória a inclusão gradual de material nacional em todas as publicações de quadrinhos no Brasil, em quotas progressivas, a partir do mínimo de 30%. O projeto foi engavetado no senado presidido por Dr. Eloy Dutra, pressionado pelas grandes editoras do Rio e de São Paulo. ADESP ficou mortalmente ferida, e muitos desenhistas sofreram boicotes de trabalho, outros aceitaram assédio, e ganharam contratos de emprego. Não os recrimino, pois muitos eram casados, com mulher e filhos para sustentarem, como o Aragão e Igayara. Eu e Saidenberg éramos solteiros, e sofremos perseguição.
E a CTPA? Essas entidades trouxeram algum resultado?
Ao contrário da ADESP que dependia de mensalidades simbólicas dos associados, a CETPA teve ajuda financeira do governo do Rio Grande do Sul. Leonel Brizola era o governador, e o presidente da entidade era o desenhista carioca José Geraldo Baptista. A CETPA trouxe algum resultado pois chegou a produzir e editar várias revistas e álbuns em quadrinhos. Eu desenhei A história do Rio Grande do Sul; Saidenberg A história da Cooperativas; Colin Sepé Tiarajú; Bendati O Lupinha; Getúlio Delphin O aba larga; Canini Zé Candango; e Flávio O Piazito. Lançou-se também fotonovela para moças, cujo título era Flerte. Tierry, um grande ilustrador, produzia capas e ilustrações. A CETPA era muito ativa. Mas virou cabide de empregos para burocratas ligados ao governo, e isso era danoso. E logo em seguida veio a renúncia de Jânio, e deposição de João Goulart, e Brizola teve de se exilar. Aí foi o fim para a CETPA.
Durante a ditadura o Sr chegou a ser preso. Poderia explicar melhor?
Aconteceu no início dos anos 70 (governo do General Médici), fui acusado de apoio logístico ao terror pelo fato de ter participado da lista de ajuda ao meu ex-patrão, Carlos H. Knapp, que estava na Europa como refugiado político. Estava lá só com a roupa do corpo. O problema de Knapp foi que a mulher dele, socióloga, comandou um grupo de subversivos no assalto ao Banco América do Sul (Nambei Ginko) do bairro da Penha. Morreu um guarda, e um dos subversivos foi ferido com tiro na cabeça. Levaram-no à residência do meu ex-patrão, na região dos Jardins, em Sampa. Precisavam urgente de sangue, aí Knapp levou o grupo até um hemobanco, armados. Horas depois, o cerco policial começou a se fechar. A vizinhança denunciou o cheiro insuportável de queima de ataduras ensopadas de sangue. Fugiram. Knapp conseguiu chegar a Porto Alegre disfarçado de padre, e embarcou no avião para a França, com ajuda de amigos. Eu fui preso dentro da agência Standard Propaganda, onde trabalhava como diretor de arte. Fui levado pelos federais e entregue à temível OBAN (Operação Bandeirantes), grupo de repressão do exército, sediado no QG da Rua Tutóia. E interrogaram-me o dia inteiro, em meio a gritos e berros vindos das dependências próximas. À noite, em cela sem leitos, o vento frio vindo do imenso pátio de manobras atravessava as grades e fustigava nossos corpos estendidos sobre folhas de jornais, em duro piso de cimento. Entre tréguas de sons doridos dos torturados, dava para perceber as pulgas agitadas pelo nosso suor acre, dando saltos quase inaudíveis quando alguém se revirava pelo desconforto. Depois de um certo tempo, fomos transferidos para as dependências que ficava no subsolo da DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), próximo da estação Sorocabana. Lá fomos novamente interrogados, e fomos misturados aos conhecidos militantes de ação armada, urbanas e rurais (ligas camponesas). Acho que nos monitoraram com recursos eletrônicos. Os presos nos aconselharam a nos autocensurar, falar só sobre amenidades, como futebol, música, ou cinema. Alguns desconfiavam de nós e faziam perguntas disfarçadas sobre nossa profissão de publicitários. Semanas depois, apenas nós publicitários, ligados àquela lista de Knapp, fomos libertados. Nossos nomes circularam com destaque nas mídias, mas apenas um primo meu, como que casualmente, perguntou-me sobre o incidente. Até meus irmãos não ousaram tocar no assunto. Um deles, discretamente fez sumir meus livros de temas políticos, quando soube da minha prisão. Mamãe, hoje com quase 92 anos, nem sabe do ocorrido.
Por que resolveu mudar para o Rio?
Percebi que ao nos libertarem sem processo, mantinham a gente sob vigilância. Seguiam-nos. Comecei a ficar paranóico, andando na rua, entrando em restaurantes, ou em fila de cinema, parecia estar sendo observado. Isso começou a pesar psicologicamente no meu rendimento como profissional que vivia de criatividade. E minha vinda pro Rio foi positiva, em pouco tempo trabalhando numa agência pequena, ela cresceu e tornei-me um dos mais premiados diretores de arte do estado. A agência era Caio Domingues & Associados, na época era considerada uma das 5 melhores agências do Brasil.
Como é o seu trabalho hoje? Ainda dedica a maior parte do tempo com quadrinhos?
Estou completamente afastado da publicidade, e decidi dedicar-me aos quadrinhos, roteiros e ilustrações nessa etapa da minha vida. Além dos quadrinhos, é emocionante lidar com os desafios complexos de um roteiro, e dos temas e cores de uma ilustração. Por exemplo, gosto muito de desenhar capas. É uma arte de suma importância, pois se requer impacto, emoção e beleza, despertando a atenção de um possível comprador. O sucesso e o fracasso de uma revista ou livro começa na capa.
Quais são os seus trabalhos mais recentes?
Guerreiros da água, projeto da escritora e roteirista Anne Rachel Sampaio para conscientização dos jovens para a necessidade de preservar as bacias de águas, hoje tão ou mais vitais que o petróleo. A colorização digital foi de Adauto silva. Musashi e Zatoichi, para a Ed. Mythos, livros escritos por Minami Keizi, fiz as capas e ilustrações. Caolho, roteiro do jornalista e publicitário Iramir Araujo, fiz a capa e quadrinização de uma das histórias. Capas para O Gaúcho, que a SM Editora está relançando. São trabalhos que publiquei nos meados dos anos 60 na Folha de São Paulo. Capa para a revista Quadrinhópole, ainda inédita. Capas e HQs avulsas co roteiros meus, para Billy the Kid e outras histórias, agora no 6º número. O livro-quadrinhos Banzai, projeto e roteiro de Francisco Noriyuki Sato sobre os 100 anos de imigração japonesa no Brasil, que desenhei. Tivemos ajudas de Paulo Fukue no roteiro, e de Adauto Silva para finalização de reticulados e letreiramento por sistema digital. Clássicos de terror, fiz a capa para essa edição de minhas HQs dos anos 60, coordenada por Wellyngton Srbek para a editora Maca de Fantasia. E finalmente, estou com as mãos numa HQ que será incorporada numa revista especial da editora Escala sobre os 100 anos da imigração japonesa, que Franco de Rosa está coordenando.
Como vê o quadrinho brasileiro atual? Existe possibilidade dos artistas nacionais voltarem a ter seu espaço no Brasil?
Vejo ma intensa atividade do quadrinho brasileiro em forma de publicações independentes, ou alternativas, com tiragens limitadas. Não tenho dúvidas de que a informática é a responsável por esse boom, barateando e democratizando, ao reduzir verticalmente os custos de produção. No passado recente uma tiragem de 5 mil exemplares corria o risco de dar prejuízo, mesmo com venda total. Hoje é comum tiragens entre 200 e 2 mil exemplares, desde que vendidas em pontos de venda seletivas (gibiterias ou livrarias), nunca em bancas, claro.
E o bom disso tudo é estar se revelando talentos novos, que acabam conquistando espaço no mercado externo.
Como vê o avanço do mangá no Brasil?
Com naturalidade, sem reservas. Mangá é fenômeno mundial, que veio para ficar e expandir, como a culinária japonesa, gostem ou não. Nada adiantará opor resistência. Acho sensato buscar (não digo aderir) incorporar em nossos trabalhos os fatores positivos do mangá, assim como fizemos com o quadrinho americano e europeu. O quadrinho não é invenção nossa, tem origem etnológica e cosmopolita. Surgiram nas cavernas primitivas, prosseguiram nos murais assíricos, babilônicos, egípcios, greco-romanos, índicos, asiáticos, pré-colombianos, painéis renascentistas, em forma de baixos-relevos ou pinturas. Os quadrinhos se fundem com a história do homem. O “moderno” graffiti é o que nossos ancestrais faziam nas paredes das grutas.
O Sr continua ainda japonês na essência, ou já é um brasileiro por completo?
Nunca me senti japonês, exceto no meu período de infância escolar, quando sofri forte preconceito. Na adolescência senti-me dividido, metade japonês e metade brasileiro. Gradualmente essa fronteira foi-se diluindo na medida em que fui ampliando meu espaço profissional e minha auto-estima. Hoje sinto-me completamente brasileiro, mas enriquecido com a cultura que herdei de meus pais.
Como será a comunidade nipo-brasileira daqui a cinqüenta anos?
A forte expansão da miscigenação entre os que são e não são nikkeis, logo uma comunidade nipo-brasileira será visto como anacrônica. Acho muito difícil que dure mais duas décadas.
Como foi o episódio do cartaz do King Kong? Na época saiu em todos os jornais.
Houve uma campanha de difamação deflagrada visando atingir o Clube de Criação do Rio de Janeiro que carregava a bandeira da nacionalização de cartazes de cinema no Brasil. Em qualquer país do primeiro e do segundo mundo, os cartazes de filmes estrangeiros eram refeitos por artistas gráficos e ilustradores locais. A multinacional Metro Goldwin-Mayer incubiu seu comunicador, o famigerado jornalista Humberto di Piero (vulgo “Giba Um”), de desmoralizar a campanha. Foi assim: o CCRJ tinha instituído o 2º concurso de cartazes, agora para King Kong, ganha pelo trio formado por Jacques Lewkowics (criação), eu (ilustração) e Paulo Hiroshi (produção). O 1º concurso, ganho por Malta, foi para o cartaz de Dersú-Uzala, dirigido por Akira Kurosawa, para uma produtora estatal russa. Sem escrúpulos, “Giba Um” que também assinava uma coluna de fofocas em principais jornais do Brasil, nos acusou de plágio da capa de maio e uma revista pornográfica americana (Hustler), que nem circulava no Brasil, proibida pela censura da ditadura militar. Ah, e tínhamos criado e produzido o cartaz em abril, e só a seleção e a premiação por jurados aconteceu em maio. Em 2005, quando preparava o livro sobre King Kong, o professor e escritor Marco Lucchetti resolveu incluir capítulo sobre o caso de acusação de plágio, e sua investigação descobriu que a tal capa de Hustler que teria nos inspirado nunca existira, nem em 1975, nem em anos precedentes. O Prof. Luchetti consultara os arquivos da Hustler via internet. Se fosse nos EUA, a essa altura estaríamos ricos processando “Giba Um” e a Metro por perdas e danos morais.
Existe alguma vantagem em ser nissei para desenhar quadrinhos?
Só quando for desenhar temas históricos e contemporâneos ligados ao Japão. A cultura herdada dos pais nos dá uma boa vantagem. Cansei de ver artistas não nikkeis brasileiros, americanos ou europeus cometerem erros colossais misturando costumes, vestimentas e arquiteturas chinesas, coreanas e mongóis como se fossem japonesas. Perdão, mas não consigo tocar no assunto sem rir por puro constrangimento. Fora isso não temos vantagem alguma.
Agradeço-lhe, caro Noriyuki, por essa oportunidade de expor, mesmo que de forma resumida, uma parte da minha vida para os amantes, ou não, dos quadrinhos nacionais. Valeu!
Veja outros depoimentos e trabalhos desse grande artista no site www.julioshimamoto.com.br.