História da imigração – parte 2
As 781 pessoas do grupo pioneiro que chegou ao Brasil em 1908 no Kasato Maru foram alocadas em 6 fazendas de café no interior de São Paulo. De imediato todas as expectativas positivas dos imigrantes, e até mesmo dos representantes das empresas que intermediavam a vinda de imigrantes, foram desmanteladas pela realidade das coisas no Brasil.
As “moradias” que os fazendeiros ofereceram aos imigrantes nada mais eram que as antigas senzalas de barro ou madeira construídas para os escravos negros, que haviam sido abandonadas e estavam há anos sem limpeza ou manutenção. Não havia piso, móveis, ou paredes divisórias. Não havia água ou instalações sanitárias. Quem quisesse ter iluminação em casa à noite tinha que comprar velas no armazém da fazenda, bem como quem quisesse ter algo para comer – o que se limitava a arroz de sequeiro, feijão, milho, carne ou bacalhau seco, ítens que os japoneses não gostavam e mal sabiam como preparar. Os brasileiros não cultivavam verduras ou soja, e os japoneses passaram a improvisar conservas com plantas encontradas no mato, como o picão e o caruru. Tais condições de vida subumanas causaram em poucos meses subnutrição generalizada, doenças e mortes entre os imigrantes.
Dificuldades de entendimento entre os imigrantes e fazendeiros devido à total diferença de cultura, idioma, usos e costumes geravam constantes atritos. “Capitães-do-mato” e “capangas” armados para levar os imigrantes aos cafezais e fiscalizar seu trabalho passavam aos japoneses a sensação de que seus contratadores não lhes tinham confiança e queriam mantê-los prisioneiros como mão-de-obra escrava. Obrigados a comprar comida e itens de primeira necessidade apenas no armazém da fazenda, os imigrantes logo perceberam que ao invés de receber um salário no fim do mês passaram a ter dívidas com os fazendeiros, dado os preços exorbitantes cobrados no armazém.
Pior mesmo era a remuneração dos imigrantes, que de acordo com as propagandas das empresas de imigração era calculada sobre uma média superestimada de 9 sacos de 50 quilos de café colhido por dia por família, que no câmbio da época equivaleria a 5 ienes e 50 sens por dia (em dois dias de trabalho no Brasil os imigrantes esperavam ganhar o salário mensal de um policial no Japão). Entretanto, ao chegar nas fazendas os japoneses foram colocados para trabalhar com cafeeiros velhos, de baixa produtividade, que resultavam numa colheita escassa, que mal chegava a 2 sacos colhidos por dia por família. Do dia para a noite passando a ser explorados como mão-de-obra escrava, empurrados para a miséria e correndo risco de vida pela situação de abandono, os imigrantes não tiveram outra alternativa senão fugir das fazendas e buscar outras profissões. Até o fim de 1908 apenas 359 das 781 pessoas que chegaram em junho daquele ano no Kasato Maru ainda se encontravam nas fazendas contratantes. Na Fazenda Dumont, que recebeu o maior grupo de imigrantes japoneses (210 pessoas), ninguém ficou.
MOBILIDADE PROFISSIONAL E O INÍCIO DAS COLÔNIAS
Ao contrário do que hoje se imagina, grande parte dos imigrantes pioneiros não tinha sido agricultor no Japão. Alguns dos imigrantes japoneses tinham estudo; muitos já haviam morado em cidades e trabalhado como comerciantes, carpinteiros e ferreiros, e ao fugir das fazendas voltaram a exercer a profissão que tinham no Japão como trabalhadores independentes. Outros passaram a empregar-se na construção civil, ou tornaram-se empregados domésticos, ou ainda estivadores nas docas. Na década de 1910 instalou-se em Santos um pequeno grupo de profissionais autônomos e pequenos comerciantes imigrantes, e na década de 1920 japoneses passaram a morar e abrir negócios na Rua Conde de Sarzedas, na região central da Sé em São Paulo.
O fracasso da alocação de imigrantes como mão-de-obra assalariada em fazendas de café levou a uma alteração na forma pela qual se deu continuidade ao processo imigratório. Aproveitando a onda de expansão desenvolvimentista para o interior que então ocorria no Brasil, a partir de 1910 as empresas de emigração japonesas passaram a comprar grandes áreas de mata virgem para instalar as shokuminchi (colônias ou núcleos coloniais). Por este sistema de colônias os imigrantes passaram a vir para o Brasil como adquirentes a prazo de lotes de terra pertencentes às empresas de emigração, desbravando áreas distantes e mata virgem sem ajuda governamental para se tornarem pequenos produtores agrícolas. Ao invés de empregados em regime de semi-escravidão em cafezais, os imigrantes passaram a vir como pequenos agricultores independentes produtores de arroz e algodão (na época produto-base da indústria têxtil mundial, tão valorizado quanto o café). A primeira colônia foi a Colônia Monção, fundada em 1911 na região da estação Cerqueira César da linha férrea Sorocabana, interior de São Paulo, mas logo surgiram várias outras shokuminchi. Este sistema deu origem a várias cidades no Brasil, como os municípios paulistas de Aliança, Bastos, Iguape, Registro, Suzano, e as cidades de Assaí no Paraná e de Tomé-Açú no Pará, que começaram como colônias de pequenos produtores rurais japoneses. Os produtos cultivados nas colônias passaram a variar da pimenta-do-reino em Tomé-Açú, ao chá em Registro, e à atividade granjeira em Bastos.
Bastos – Praça Kunito Miyasaka | Inauguração da Ponte Novo Oriente | K.K.K.K. em Registro/SP |
Desta época de imigrantes pioneiros desbravadores destacam-se as iniciativas de Unpei Hirano e Shuhei Uetsuka. Hirano foi tradutor dos imigrantes do Kasato Maru e intermediou queixas dos imigrantes com os cafeicultores contratantes. Hirano foi um dos que primeiro percebeu que os imigrantes teriam melhores condições de vida e chances de sucesso se não tivessem que se sujeitar às condições impostas pelos contratos de trabalho rural assalariado. Em 1915 fundou a Colônia Hirano na região de Cafelândia, interior paulista, vindo a falecer prematuramente de malária, aos 34 anos em 1919. Apesar dos esforços dos colonos, a Colônia Hirano foi um capítulo trágico da história da formação das colônias de japoneses no Brasil – uma invasão de gafanhotos, seguida por uma grande seca, destruiu as lavouras, e os colonos foram dizimados por uma grave epidemia de malária. Uetsuka veio como representante da empresa de emigração japonesa junto com os pioneiros do Kasato Maru e em 1918 fundou a Colônia Uetsuka perto da estação Promissão da linha férrea Noroeste. Idealista, Uetsuka viveu com os imigrantes colonos, enfrentando as mesmas dificuldades que os demais e tornou-se admirado líder da comunidade, que prosperou.
Os imigrantes nas colônias rapidamente organizaram a vida civil e comunitária nos moldes da distante terra natal. A primeira coisa que fazem ao constituir uma colônia é organizar uma kyõkai (“associação”, entidade para tratar de assuntos comunitários) e construir um kaikan (“auditório”, salão ou galpão que funciona como sede da comunidade). A segunda providência era cuidar da educação dos filhos. Tamanha era a preocupação dos imigrantes com a educação dos filhos, que ao chegarem a uma fazenda ou colônia imediatamente encarregavam alguém em condições de dar aulas simples de linguagem e matemática às crianças e organizavam-se turmas e horários surgindo assim as nihongakkõs, escolas rurais de ensino elementar em japonês.
Tendo a intenção de retornar ao Japão assim que conseguissem economias suficientes, os imigrantes das primeiras décadas do século XX queriam que seus filhos fossem educados como dainipponjins (súditos japoneses). Ensinar-lhes a língua nipônica e ministrar-lhes ensinamentos sobre a cultura japonesa e o yamato damashii (espírito japonês) era prioridade tal que os pais não hesitavam sacrificar horas de sono e trabalhar mais para que seus filhos, que também trabalhavam na lavoura e nos afazeres domésticos, estudassem “para que quando regressassem ao Japão não passassem vexame”. A primeira escola japonesa urbana foi a Escola Primária Taisho, fundada em 1915 em São Paulo, mas havia quem pensasse em fixar-se no Brasil em definitivo. Em 1918 as irmãs Teruko e Akiko Kumabe se graduaram em magistério no Rio de Janeiro, tornando-se as primeiras japonesas a obter diplomas de professoras primárias no Brasil. Em 1919 as irmãs Kumabe também se tornaram as primeiras imigrantes naturalizadas brasileiras.
O sistema das colônias também propiciou a criação de uma imprensa em japonês para a comunidade no Brasil: os chamados “jornais da colônia”. O primeiro desses jornais foi o Nanbei (América do Sul), lançado em janeiro de 1916. Em agosto do mesmo ano surgiu o Nippak Shimbun (Jornal Nipo-brasileiro), e em 1917 foi lançado o Burajiru Jihô (Notícias do Brasil), que tinha a característica de ser o informativo oficial da Ijû Kumiai (“cooperativa de emigração”, nome pelo qual era conhecida a empresa que trazia os colonos japoneses ao Brasil). A existência desses jornais indicava não só que o número de imigrantes havia aumentado (até 1917 estima-se que 18.800 japoneses entraram no Brasil formalmente como imigrantes), como também que a comunidade estava progredindo financeiramente, pois havia se criado uma base econômica capaz de sustentar as edições. E sob o aspecto cultural revela que os imigrantes em geral eram letrados em japonês.
O SURGIMENTO DAS COOPERATIVAS
O espírito empreendedor torna-se uma característica dos imigrantes pioneiros. Um exemplo disto foi personificado por Takehiro Mamizuka, que chegou em 1910 no segundo navio de imigrantes. Em 1912 ele foi ao Mercado Municipal em São Paulo para conhecer os preços dos legumes e das verduras. Percebendo que a cidade estava em rápida expansão e que a demanda por alimentos só aumentaria, ele adquiriu uma pequena propriedade em Taipas, na região norte da cidade, e passou a produzir batatas para vendê-las no centro. Mamizuka é considerado o pioneiro da agricultura de subúrbio, sem a qual os paulistanos de hoje não teriam acesso à indispensável saladinha.
Se por um lado Mamizuka ilustra o tipo louvável de iniciativa individual do imigrante, os japoneses também implantaram no Brasil importantes iniciativas de grupo. Não há um meio de se precisar quando e como surgiu a idéia de se organizar uma cooperativa de produtores agrícolas entre os imigrantes japoneses, mas é fato que a expressão “cooperativa agrícola” aparece pela primeira vez na edição de 5 de setembro de 1919 do jornal Burajiru Jihô, num artigo que conclamava imigrantes a participar do “Syndicato Agrícola Nipo-Brasileiro” em Uberaba, Minas Gerais. Considerado a primeira cooperativa organizada por imigrantes japoneses, o “Syndicato Agrícola” visava “apoiar lavradores na pesquisa de terras adequadas às determinadas culturas, elaboração de contratos, financiamento de capital, compra e venda coletivas, etc., todas as facilidades, com a finalidade de conseguir um desenvolvimento seguro de nossos compatriotas”. Embora o pioneiro “Syndicato Agrícola” não tenha durado muito tempo, sua existência inspirou outras iniciativas similares.
A mais importante das cooperativas agrícolas de produtores imigrantes japoneses foi a CAC – Cooperativa Agrícola de Cotia. Oficialmente fundada em 1927 ela começou com a união de 83 agricultores – a maioria produtores de batata da região de Cotia – mas há registros de que ela já existia na prática, mas inoficiosamente desde 1924. Agregando de modo organizado a comunidade de agricultores e procurando soluções eficazes para os problemas enfrentados na lavoura visando melhor produtividade, a Cooperativa Agrícola de Cotia cresceu a ponto de se tornar a maior entidade do gênero na América do Sul – dados de 1988 indicam que a CAC possuía na época 16.309 associados e um patrimônio avaliado em mais de 59 milhões de dólares.